HARUN FAROCKI_imagens operativas e pós fotográficas
“Talvez eu devesse esclarecer que são as imagens de animação computadorizada que me interessam, ao invés de videogames. As imagens geradas pelo computador não são apenas uma cópia do mundo – elas são uma nova criação de mundo.” Harun Farocki
Harun Farocki (1944-2014) iniciou a sua trajetória artística no campo do cinema ativista, no fim dos anos 1960 na Alemanha, e se voltou para o universo das videoinstalações a partir da década de 1990.Híbrido de ensaio e documentário, sua obra encontra contexto no cinema de Jean-Luc Godard, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, bem como nos escritos de Bertold Brecht.
O realizador sempre esteve `as voltas com questões sobre o lugar de cada indivíduo na cadeia de produção global e investigação das formas de representação nos sistemas de poder.
Duas dimensões centrais e complementares constituem as suas obras:_a percepção de que não existe imagens inocentes.pesquisa sobre o mundo do trabalho e suas consequências na organização da sociedade.
_pesquisa sobre o mundo do trabalho e suas consequências na organização da sociedade.
Farocki desafia a história ao interrogar suas representações a partir da apropriação de imagens alheias, imagens da memória. Em exercício de (re)leitura a partir de novas contextualizações de montagem, as imagens ganham outras reflexões, outros sentidos. Segundo o autor, “aquilo que uma imagem é ou produz depende das mediações ou da ausência destas no ambiente em que elas emergem”.
Desde a década de 1980, Harun Farocki vinha estudando a ascensão de câmeras eletrônicas que produziam automaticamente imagens e conferiam algum tipo de ação bastante específica. Câmeras que tinham o traço comum de dispensar a presença humana na operação do dispositivo. Em 2002, no ensaio intitulado Influências transversais, o autor havia chegado a algumas consequências teóricas: propunha que tais imagens poderiam ser chamadas de imagens operativas, isto é, imagens subtraídas a um operativismo em si mesmas, dispensando ou eliminando qualquer elo que ativa um sentido de transindividuação com outras.
Farocki dirá que as imagens operativas são “aquelas imagens que visam restituir uma realidade, mas que partem de uma operação técnica [...]. Coisas nada estéticas, que sejam pura comunicação”. Elas permanecem, portanto, no sentido restrito do verbo operar: cumprindo apenas ações de forma eficiente e prenotada; e se colocam fora da pretensão de serem imagens realizadas para o conhecimento ou entretenimento, automatizando diversas ações para trabalhar “livre” da intervenção humana.
Dois projetos contribuíram para as pesquisas de Farocki: a arte experimental pós-humana do canadense Michael Snow e o documentário do alemão Michael Klier, feito a partir de registros das câmeras de vigilância de aeroportos.
Em suas obras, Farocki abordaria as imagens operativas de uma forma eminentemente política – sem intentar formas artísticas experimentais. Seus estudos se voltariam para distintas imagens operativas, estabelecidas como dispositivos de controle temporal e espacial na produção / destruição em fábricas, prisões, ruas, exércitos etc.
Os estudos de Farocki se voltaram também a outro regime de imagens surgido igualmente com o paradigma digital / eletrônico: as imagens pós-fotográficas (de simulação, de criação virtual. Estas imagens virtuais, podem ser entendidas como uma “liberação” do modelo arquetípico e das coordenadas geográficas e geométricas que estão na base dos paradigmas pré-fotográficos (artesanal, contemplativo, único) e fotográfico (mecânico, perceptivo, reprodutivo).
Em relação ao digital pós-fotográfico (virtual, derivativo, ubíquo), “pode-se dizer que o próprio real, o referente originário, se torna maquínico, pois é gerado ou simulada pelo computador. Nesse tipo de imagem, a captação e a reprodução se tornam diferentes: dispensa-se o “real prévio” que era preciso nos paradigmas anteriores, de modo que objeto e imagem se tornam uma coisa só, sendo produto do cálculo.
A partir de alguns modos de inter-relação da imagem virtual com o real – destacados pelo teórico Jean-Louis Weissberg – poder-se-ia registrar diferentes extensões dos trabalhos de Farocki em relação a estas imagens pós-fotográficas.
O objeto de estudo aqui em questão é o projeto Jogos Sérios – Serious Games (2009-2010) – série de filmes que propõe a apresentaçãodo real a partir do virtual.
O realizador se aproxima dos temas e questões levantados por Paul Virilio e Jonathan Crary. Assim como Crary, Virilio discutiu intensamente a questão da “obsolescência humana”, ou melhor, da delegação de gestos humanos para a automação maquínica, tema que, para Farocki demarcava uma questão fundamental sobre a atual condição humana contemporânea e seus novos horizontes políticos.
Jogos sérios (2009-2010)
“O que fazer com todas essas imagens que não são realizadas para o campo estético, mas que servem, em primeiro lugar, para dispor ao controle da vida, contra as populações?” Harun Farocki
Jogos sérios I: Watson está ferido, 2010 - 8’
Jogos sérios II: três mortos, 2010 - 8’
Jogos sérios III: imersão, 2009 - 20’
Jogos sérios IV: sol sem sombra, 2010 - 8’
Sob a mira da sua obra política, a guerra, seus efeitos traumáticos e tratamentos por meio de tecnologias de simulação, Farocki apresenta a videoinstalação Jogos Sérios – Serious Games (2009-2010).
A obra, constituída de quatro vídeos, é um estudo das imagens pós-fotográficas de realidade virtual (de imersão e interação) utilizadas em campos militares.
O título da obra é homônimo `a categoria em que esse tipo de recurso é incluído. Jogos sérios são games que emulam realidades de zonas de conflito, a fim de capacitar o soldado para a vivência da guerra e, posteriormente, possibilitar sua recuperação por meio da reencenação de fatos traumáticos que o combatente guarda na memória.
O Exército norte-americano utiliza a tecnologia de simuladores que se assemelham a jogos de videogame, tanto na preparação para o combate quanto no tratamento das sequelas remanescentes. O programa Iraque Virtual, instrumento utilizado na obra, foi uma oportunidade para Farocki abranger a “tendência nova e estranha” (nas suas palavras) que as imagens pós-fotográficas começavam a empreender.
Nos dois primeiros vídeos – Watson está ferido e Três mortos – compostos de cenários cinematográficos e virtuais, destacam-se ambientes exclusivamente de treinamentos de soldados para os campos de batalha.
Quatro fuzileiros navais sentados numa sala de aula, em frente a quatro laptops, simulam a tripulação de um tanque de guerra no Afeganistão. Os soldados reconhecem o território enquanto utilizam estratégias de defesa.
A animação foi construída a partir de dados geográficos reais e fiéis ao relevo afegão, e os efeitos dos movimentos e do tráfego dos tanques traduzem a realidade.
Na visão dos bastidores do confronto, na imagem tecnológica, o soldado está no comando do jogo, não importa se leva um tiro ou não. Os alvos, são abstratos.
Na guerra virtual com estrutura de videogame a câmera sai de cena.
Nas palavras de Farocki: “na classe onde filmamos, os soldados não foram repreendidos por haver perdido o atirador Watson, mas por não terem se comunicado o suficiente com os outros tanques com os quais estavam em missão. O que importa apontar aos alunos não é a morte de um combatente, mas a razão pela qual ela acontece, fortalecendo a compreensão da técnica de batalha em detrimento da perda de um companheiro. Mesmo com toda a atenção aos detalhes, a morte no jogo de computador ainda é diferente da real. Como é possível traduzir a experiência com a morte e com o sofrimento em uma interface artificial?”
Nos terceiro e quarto vídeos da instalação – Imersão e Sol sem sombra – a reconstituição virtual da paisagem iraquiana surge a partir de representações virtuais achatadas, sem relevo. O objetivo terapêutico é fazer com que o soldado, a partir do processo de “imersão” reviva momentos traumáticos passados.
Os gráficos dos dois games, tanto o de treinamento quanto o de tratamento, são semelhantes – os cenários usados são puramente funcionais, falta a eles todo o desenho fantástico de um jogo de computador comercial.
Farocki observou que a diferença dos games está na ausência de sombras projetadas das figuras naqueles jogos usados para terapia (como se não houvesse sol sobre o entorno) e também no valor do investimento financeiro atribuído aos programas, pois as imagens para treinamento são mais verossímeis do que as utilizadas no tratamento dos soldados.
Nas palavras de Farocki – “mostro esses dois usos da imagem virtual, do preparo para a guerra ao tratamento do trauma. Esse exercício através da imagem digital dá a entender a estandartização das produções na construção da memória da guerra e também aponta para uma transição na natureza da imagem no mundo atual”.
Jogos sérios I: Watson está ferido, 2010 - 8’
O filme apresenta uma sessão de treinamento na base militar Marine Corps Base 29 Palms, na Califórnia, em outubro de 2009.
Jogos sérios II: três mortos, 2010 - 8’
Ainda na base militar Marine Corps Base 29 Palms, Harun Farocki acompanha o treinamento realizado numa cidade cenográfica no deserto californiano. O objetivo desse exercício é preparar os soldados para situações de conflito bélico em ambientes civis no Afeganistão e no Iraque. A atividade contou com cerca de 300 figurantes escolhidos entre imigrantes iraquianos, iranianos, afegãos e paquistaneses.
Jogos sérios III: imersão, 2009 – 20’
Cenas de uma palestra e de um workshop com a participação de psicólogos e psiquiatras das Forças Armadas norte-americanas sobre o uso de programas de realidade virtual para o tratamento de veteranos de guerra com estresse pós-traumático. As gravações foram feitas no Institute of Creative Technologies, Washington.
“É preciso levar em conta que a terapia é baseada na linguagem”, explica Farocki.
Jogos sérios IV: sol sem sombra, 2010 - 8’
Harun Farocki compara as animações de programas de computação para treinamento de guerra com imagens de programas de realidade virtual utilizados na terapia de soldados com estresse pós-traumático.
“Será falso? Devemos nos dar conta: por que algo teria que ser falso só pelo fato de ser encenado ou por ser feito com o propósito de vender algo? Por que é menos verdadeiro do que algo que não é premeditado? Esta é uma pequena lição sobre o significado que não é construído, que é simplesmente incorporado. É como um efeito que cria um significado que flutua sobre os demais, para além do que está explícito”. Harun Farocki
Jogos Sérios (2009-2010)_trailer_Harun Farocki_ from Valéria Rousseau on Vimeo.
Jogos Sérios (2009-2010)_série completa_Harun Farocki_(Link)